O MISTERIO DA DOR
Conforme a reza do terço avançava, a vida das pessoas
entravam em conflito, mas elas não se davam conta disso, todos estavam ali, o
aspirante a seminarista que sentia vontade de namorar, a adolescente que rezava
pra nossa senhora com medo de estar gravida, mas já era tarde demais.
__O anjo do senhor anunciou a Maria, e ela concebeu do
espirito santo...
Uns rezavam contido, outros rezavam com pressa, o pensamento
na novela ou no jogo de futebol, uma senhora de rosto sofrido, rezava pensando
o que faria com toda a solidão que sentia depois de ter ficado viúva e o único
filho que tinha, viajou pra são Paulo a mais de dez anos e não queria voltar
para morar com ela.
Era sexta-feira, os mistérios a serem contemplados
refletiriam a dor de jesus, será que alguém ali já tinha sentido a intensidade
de uma coroação de espinhos na própria cabeça? Talvez dona Maria de vestido
longo que “puxava” a reza do terço e a musicalidade da ladainha, e já tinha
sido mãe de 19 filhos? já tinha enterrado alguns. Mas será que o dono da casa
não sabia o que era dor também ?Nunca entrava pra sala para rezar com a família
e com os vizinhos apesar de ser muito temente a Deus, preferia ficar em cima da
calçada ou no terreiro, fumando um cigarro depois de mais um dia de trabalho na
roça, de vez enquanto botava a cabeça na
porta da sala e olhava para as pessoas rezando, tinha o olhar tímido para estar
no meio daquelas pessoas, mas só ele sabia o peso de ter falhado no primeiro casamento,
o peso da cruz de ter perdido a infância dos filhos do primeiro casamento. Algumas
crianças ali presentes também experimentavam a dor personificada na figura de
um pai alcoólatra e violento que gastava o dinheiro com bebidas e não comprava
comida.
__Vamos contemplar agora a flagelação de Jesus. A
adolescente que lia não tinha noção daquele versículo, ou será que tinha?
Pensava no namorado lá fora esperando na esquina pelo final da novena, em cima
da moto com maconha no bolso e nada romântico, só pensava em sexo, e ela não
sabia como se livrar dele.
Todos ali tinham algo para contar na hora da leitura do
trecho do evangelho próprio do dia, tentavam explicar o texto pela ótica de
suas vidas sofridas. A avó engolia as raivas que as netas adolescentes a faziam
passar. Todos os presentes conheciam a vida de cada um, eram vidas que se
entrelaçavam em cumplicidades cotidianas. Depois da reza do terço, iria ter
café com bolo e refrigerante. Era uma oportunidade de esticar a conversa no
terreiro.
__Jesus é despido de suas vestes!
Alguns ali conheciam a sensação, de só ter a roupa do corpo,
de amanhecer o dia e a panela esta emborcada em cima do fogão aonde iria passar
o resto do dia por falta de alimento para ser preparado. A mulher gravida
acariciava a barriga pensando em nossa senhora do bom parto, pensava em comida
também, sentindo o cheiro do bolo e desejando, pois sentia fome e o dinheiro
que o marido ganhava só dava para alimentar os outros filhos que já tinham
nascido, mesmo ele tirando mercadorias fiado em uma das quitandas do bairro,
mas todos ali iriam dar o bolo de coração para a mãe não se sentir mal e para a
criança não nascer com a boca aberta, mas mesmo assim a mulher esboçou um
pequeno sorriso assustado, levou as mãos a barriga quando o filho deu o
primeiro chute, o primeiro de muitos.
Contemplaram a crucificação e a morte de jesus de maneira
mecânica, sem se darem conta dos mistérios que cada um encarnava no seu
dia-a-dia num misto de dor, alegria e esperança.
A dona da casa perdoava as escapadas do marido com a vizinha
que também estava presente. A coordenadora do coral do bairro ao termino do
terço ofegou a respiração cansada ao imaginar que teriam que percorrer várias
casas naquela noite pois era mês de Maio e todas as casas do bairro teriam que
receber a visita da imagem da santa e ela ainda pensava num jeito de concluir
os trabalhos do curso pedagógico quando chegasse em casa tarde da noite, iria
ser uma peregrinação pelas ruas escuras do bairro sem iluminação pública em
alguns pontos, lamaçal e indiferença de algumas pessoas diante da dedicação do grupo.
Todos ali sentiam algum tipo de dor e de alguma forma reagiam contra ela.
Alguns que não queriam participar da devoção usavam
desculpas como muletas:
__A igreja só pede dinheiro!
__Que negócio é esse de outra vida? Quando a gente morre
acabou e pronto!
Em algumas casas só uma parte da família participava da
reza, outros escolhiam outro cômodo da casa para continuarem na novela, só
iriam se lembrar de uma oração quando um membro antigo da família morresse e
fosse preciso chamar o sacerdote, mesmo assim nem todos respeitavam o silencio
necessário para o último adeus feito pelo padre, que se irritava com aquilo,
afinal ele também tinha suas feridas, ele também tinham dúvidas ao contemplar
os mistérios dolorosos, será que valia mesmo a pena ser padre? E levar consolo
espiritual a quem as vezes nem se importa e não dá valor, como seria sua vida
se tivesse optado pelo sacramento do casamento, seria outro inferno ou um paraíso,
teria filhos? Terminou a celebração da missa de corpo presente, entrou no carro
e voltou pra solidão da casa paroquial, pensando na declaração de amor que
ouvira de uma fiel e que o deixara balançado. Aquilo era um extrato de um pequeno
mundo, uma bolha existencial de vidas atadas pôr o fio do destino, uma bolha no
meio de tantas outras, formando uma corrente, um elo, um rosário ao mesmo tempo
humano e divino.
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