QUANDO A NOITE CHEGA

Fiquei com medo de perder meu pai toda vez que ele saia para caçar com a bati-bucha. Eu ouvia fragmentos de conversa entre ele e os amigos de que uma onça poderia surpreender um caçador na descida da espera, que mesmo uma onça pintada, cercada por 7 caçadores não se sente acuada, pelo contrário, ela começa a olhar fundo dentro dos olhos de cada caçador e começa a sondar seus medos e sua coragem, ela consegue identificar o mais corajoso do bando e nele vai direcionar seu ataque para escapar da emboscada.
Então era nesse mundo perigoso que meu pai vivia?
__ As vezes o cão atenta e outro caçador pode se transformar em caça.
__Isso é conversa de Trancoso!
Pronto! era tudo que meu pai queria, que alguém questionasse a veracidade daquilo que ele estava contando, ao invés de se intimidar, ele sentia vontade de prolongar a conversa mais ainda, contando um caso atrás do outro, “embolando uma história na outra”, conversando “miolo de pote”. Ele cruzava a perna, acendia o cigarro de palha e se a noite já tivesse chegado antes do assunto encerrar ele soltava uma baforada de cigarro entre uma fala e outra para espantar as muriçocas para que  ele pudesse conversar em paz, mesmo correndo o risco de ser tachado de mentiroso, ora ria, ora a voz ficava mais cavernosa, imitava os sons que os bichos faziam quando a noite chegava na mata, o pior é que ela nunca chegava sozinha, chegava cheia de tentação, como um esqueleto que cai e ainda pergunta se pode.
Para ele a noite era cheia de nó pelas costas. A meia-noite era uma hora estranha, morta, zero. Até mesmo a correnteza do rio surubim diminuía seu fluxo, enquanto àquela hora morta não passasse, mas só caçador mais atento conseguia observar. Meu pai, narrando mais um caso acontecido durante uma incursão noturna fosse caçando ou pescando era sinal que o encontro com os amigos iria durar bem mais que o esperado, por isso a chaleira ia para o fogo, agora iria sair café de qualquer jeito. O buraco da fechadura era quem trazia os relatos desse mundo encantado para o pequeno espião da sessão da tarde.
Eram fragmentos de um mundo magico em que tudo tinha consequência, era preciso respeitar as regras desse mundo, se não botava a caçada no mato. Então você aprendia que se trocasse sua espingarda por uma arma de um macumbeiro, as trilhas da mata iriam se alterar só por você está usando uma arma proibida e aquele cupinzeiro habitável, agora era um lugar desolado, cheio de teias de aranha, abandonado a décadas, nenhum animal tinha morado ali. A realidade tinha sido alterada, e o medo se fazia presente.
Meu pai tinha umas frases perfeitas para fazer a história continuar a fluir.
__ Foi quando eu lembrei de olhar dentro do patuá do outro caçador e tomei um susto, quando comecei a caquiar com a mão lá dentro, tinha todo tipo de bugiganga: vela preta, rosário bento, penas, pedaços de osso, vudus, pentagramas, foi aquilo que fez a minha caça se encantar, nunca mais eu troco de espingarda com um macumbeiro.
E assim ele ia catalogando as leis daquele mundo, explorando a noite, vigiando o barulho da mata, descobrindo o perigo num simples assobio respondido as seis horas da tarde na beira do rio que atraiu todo tipo de alucinação durante a noite toda e o seguiu pelo caminho de volta pra casa, só o deixando em paz na porta do cemitério que ficava a meio caminho entre o rio e a cidade.
O cheiro de mambira morto invadiu a cozinha de taipa com piso de barro batido, observei os orifícios no corpo do animal, e deduzir que por trás daquela crosta de sangue seco existia vários buracos de chumbo da espingarda do meu pai, eu tinha observado no dia anterior, ele fervendo pilhas antigas que tinha tirado do rádio para tornarem a da carga na lanterna mais uma vez e assim sair de casa com o escuro e quem sabe chegar com ele de volta da mata, e assim prolongar o tempo da caçada.
Aquela incursão noturna era a primeira que ele fazia depois dele ter desfeito a troca das espingardas com o macumbeiro, mesmo assim, isso ainda lhe deu dor de cabeça, pois pra matar o mambira, a primeira vítima depois daquela confusão toda, foi preciso preparar uma munição especial e ficar rezando e fazendo cruzes na boca do cano da espingarda pra ela voltar a funcionar novamente, “sem bater catolé”.
Eu vi ele chegando, um pouco antes dos amigos chegarem procurando para conversarem com ele enquanto bebiam cachaça em um banquinho de madeira que ele conservava no terreiro da frente da casa. Colocou a caça no chão, pendurou a espingarda e o patuá em um canto da parede, acendeu o fogo para ferver agua e tirar o coro do bicho, acendeu uma vela pra almas, com as quais ele tinha se “empautado”, eram seis horas da tarde e ele não queria correr o risco de quebrar nenhuma regra.  


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