O PASSAGEIRO

O PASSAGEIRO

O cheiro de cuscuz se espalhou pela cozinha quando Maria levantou a tampa da cuscuzeira.
__Meio-dia eu volto do serviço. Disse o marido preparando o Nescafé na xicara, tinha gestos apresados e mecânicos de olho no relógio de parede para não perder a hora, poderia perder qualquer outra coisa mas não aquilo, aquilo o mantinha dentro do rebanho: o relógio, o ponto de ônibus, a servidão voluntaria de servidor público, mantinha sua sanidade funcionando.
__A gente podia marcar uma consulta pra nossa filha no outro turno.
__Pode ser. Te espero na estação.
Ele ainda conseguiu assistir um resumo do noticiário da madrugada antes de sair: pessoas corruptas sendo presas, bombardeio na síria e medalhas olímpicas. “Esses rebeldes não aprendem mesmo, quem ganhar vai governar só pra ruinas, pensou.
Antes de chegar no ponto de ônibus, um coletivo passou direto fazendo pouco caso de quem tinha chegado na parada antes dele, o que provocou uma torrente de palavrões de trabalhadores e estudantes que precisavam se deslocar para a capital.
Esperou o próximo, era o jeito, embarcou, mas não estava sozinho. 
O silêncio era só mais um passageiro naquela manhã sarnenta de segunda-feira, o ônibus ressentia a ressaca e preguiça. Cada um em seu próprio cosmo de fone de ouvido e watzap, enquanto alguém dava corda no relógio do tempo, tudo se pós em movimento, inclusive gaia, até a próxima parada. Mais silêncios embarcaram, carrancudos em forma de gente.
O bilhete de passagem começou a suar entre meus dedos, enquanto ele lutava por espaço e equilíbrio. Será que vou chegar atrasado hoje? Especulação filosófica de empregado. Ponto de equilíbrio para guardar o troco no bolso. Um acento livre agora, mas não adianta, já ta perto da parada, tudo dentro do esperado, linhas retas, curvas sinuosas, subidas,descidas,ladeira,cada silêncio agora procura seu rumo até chegar o momento em que ele vai ser quebrado, fissura de placa tectônica. É preciso jogar uma iniciativa até o próximo ponto. Será que vai chover? Será que vou ser assaltado? ele respondia com artilharia de bolso feita de versículo.
Olhou para os edifícios pensando em revistas em quadrinhos, querendo imitar um parceiro de Alan Moore.Descidiu que precisava de café para começar a outra parte do dia.No trajeto para a escola passou na padaria e comprou pão feito na hora, calculou que  tenhia uns dez minutos extras, iria dá tempo.
Cumpriu o horário do expediente como um zumbi, sem grandes especulações filosóficas, até que o ponteiro do relógio apontou a direção da liberdade mais uma vez, iniciou a odisseia da volta pra casa.



Ele tinha que voltar pra casa. Era o terrível “depois da festa”. Se pudesse jogava cada pedaço de culpa pela janela do carro. Não deixaria sua autoestima ser espancada até a morte daquele jeito.
Sentiu pena do palhaço na faixa de pedestre, devia esta uns 40 graus lá fora.Inferno. Mas ele também sufocava atrás do volante. As buzinas dos outros carros o impediam de entrar em transe de vez, a engrenagem do sistema precisava ficar funcionando, por isso o leviatã social engolia a todos: motoristas, passageiros, malabaristas em faixas de pedestres, flanelinhas e guardas de trânsitos. A sua consciência oscilava, como uma falha no holograma. Acidente em cima da ponte, alguma coisa não vai bem na engrenagem. Algumas variáveis primatas tendem para o caos. Mas o sistema inicia a fase de autocorreção e depois do descarrego de adrenalina, e outros de alucinações verbais, os corpos voltam a sua programação normal, da selva de pedra.
No meio daquilo tudo, alguém ainda consegue pregar o evangelho e vender balas, mas pelo tom de voz do cara, era melhor ele perguntar:__Doce ou travessura? Mas faça chuva ou faça sol, faça 20º ou 40º c, todo mundo fica entorpecido em um mundo particular de telas sensíveis. A rede estar em todo lugar, é mais mobilidade pra você, mas você tem de pagar pra entrar no jogo, a maioria paga, ela é consciente e sempre diz: “beba Coca-Cola”, o importante é ser feliz, oferta por tempo limitado. Paraiso artificias são erguidos na palma da mão. De repente alarmes disparam, correria, barulhos de sirenes, tiros, corre que é assalto, “imagens ao vivo do local”. Um pouco de caos de vez enquanto faz bem para ao ordem social. Caos vindo de dentro. E preciso ter o que imprimir na página de jornal do dia seguinte. É preciso que alguém se ferre todos os dias em vários setores sociais para o ibope subir.
De vez enquanto um pouco de endorfina cômica para aliviar a dor, afinal a vida ainda pode se bela. Todo mundo adora uma história de superação, um reencontro, uma volta pra casa sendo filmada. Ninguém nem se porta se você faz uma crítica, ninguém te manda pro exilio, o máximo vai ser spray de pimenta, cassetete, e bombas que prometem ensinar algum tipo de moral, mas isso já é muita coisa, afinal as bombas também tem o direito de participar do processo educacional, elas não podem ser excluídas, até porque elas podem reivindicar o direito de se organizarem em sindicato, criarem um partido radical e tudo mais.

Mas parece que tudo isso já era previsto, tinha que entrar no palco da história, o sistema agoniza, mas não morre, tudo pode ser substituído, trocado por uma versão 3.0, as coisas se sucedem em um eterno retorno macabro dentro do sistema, que provoca náuseas em quem tem a audácia de perceber que algo não estar errado nesse sonho ou nesse pesadelo e que puxar o plug pode ser bem mais doloroso do que se imaginava. 

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