O VELHO DO ENXOFRE

O VELHO DO ENXOFRE


Não peço que ninguém der credibilidade a essas linhas que escrevo, nessa espécie de diário improvisado na verdade é um caderno escolar da minha filha que aproveito pra registrar aqui uma memória, agora depois de adulto, depois que atinjo a meia idade que tenho coragem de olhar para trás e mergulhar no tempo da memória e relembrar uma vez mais o episodio que ocorreu na minha infância envolvendo eu e meu irmão, nossa família era pequena e as primeiras lembranças eu tenho era meu pai saindo pra roça e mamãe fazendo as coisas em casa, lavando, passando,costurando,varrendo o terreiro e outras coisas, papai chegava depois, no fim do dia, geralmente cansado e sujo e em algumas vezes machucado com cortes ou pequenos ferimentos pelo corpo, e a gente, bem a gente, eu e meu irmão nos só brincávamos, quando atingimos a idade escolar, íamos pra escola e quando chegávamos em casa brincávamos mais, na verdade a gente brincava no caminho entre a casa e a escola, no intervalo do recreio, em casa, no caminho da roça quando era tempo da panha do arroz, nas caçadas que nosso pai realizava na mata perto do rio surubim, a vida tinha a cor da brincadeira, eram brincadeiras de caçar com armas de brinquedos, espingardas de taboca, petecas, castanhas que utilizamos em um jogo de arremesso, do esconde esconde, do trisca, de triangulo, de soltar pipa, de futebol, mas não sei porque não sei se era por eu ser o mais velho, foi se formando em mim um caráter de seriedade desde a mais tenra idade e por outro lado, pelo menos é o que interpreto agora, uma idole de rebeldia e falta de comportamento no meu irmão de forma que ele passou a receber mais repreensões e surras do que eu, no inicio meu pai era quem batia mas como ele tinha a mão muito pesada essa tarefa passou pra minha mãe, apesar disso tudo, as surras não surtiam efeito  com o passar do tempo, ao passo que pra mim bastava um olhar com cara ruim do meu pai ou da minha mãe que surtia efeito e eu parava o que tava fazendo de errado com medo da mão pesada do meu pai apesar dele ter prometido que não iria mais bater na gente com talo de coco nem com pano de facão.
Mas como éramos pequenos não tínhamos muito poder nem força física para revelar toda essa rebeldia que parecia esta latente mais em meu irmão do que em mim, de forma que isso se manifestou primeiro nele na forma dos palavrões que ele falava apesar de nossa mãe sempre da conselho para não fazermos isso, e ele continuava falando priquito, diabo, disgraça, era assim  que ele falava e depois ficava sorrindo com o dente na fresca, apesar de nosso pai dizer que toda vez que a gente fala desgraça o chão ou a superfície da terra como entendo hoje afundava sete vezes, mas meu irmão caminhava cada vez mais para a rebelião aberta, meu mai homem duro, já começava a ficar desgostoso, parecia que nada parecia da freio no meu irmão, minha mãe perdida nos afazeres domésticos, geralmente era surpreendida por mim fazendo orações em voz baixa enquanto botava o arroz no fogo ou quando colocava as roupas no varal.
Eu parecia passar a margem disso tudo, enquanto esse embate entre meus pais e meu irmão continuava sem solução definitiva, meu irmão já falava em fugir de casa, apesar dos conselhos que meu pai dava, dizendo que já tinha sofrido muito pelo mundo, quando saiu de casa ainda novo e acabou passando fome em outras cidades e ate pedindo esmola por que não conseguiu arrumar emprego comeu pão que o diabo amassou ate que encontrou um conhecido que pagou sua passagem de volta pra sua terra.
Um dia, bem foi uma noite aconteceu algo que virou o jogo e agora apesar de tremer tento registrar no papel, pois nas seções que fiz com uma psicóloga ela disse que talvez ajudaria eu botar pra fora através da escrita já que devido a minha dificuldade não conseguia me abrir com ela falando normalmente.
Uma noite um velho com um saco nas costas pediu arrancharia em nossa casa, disse que estava fazendo uma longa viagem, papai pediu uma rede extra que a mamãe tinha lavado no açude e guardava caso uma nossas se rasgasse e papai armou por velho em uma casinha de taipa e palha que tinha sido da vovó antes dela morrer que foi construída ao lado da nossa.
Quando eu e meu irmão olhamos pra ele seu olhar era estranho e eu percebi que olhava muito mais para meu irmão que parece ter sentido aquele olhar, foi a primeira vez que vi meu irmão ir dormir sem soltar um palavrão dentro da rede, tentou rezar a oração do anjo da guarda, mas não resou direito por falta de pratica, foi dormir sem banhar assim como eu, o dia tinha sido só de brincadeira.
Quando o dia amanheceu papai já tava no quintal conversando com a mamãe, sobre alguma coisa e apontando pra casinha de palha, eu e meu irmão atrepamos a rede e levantamos também, meu irmão saiu rápido do quarto meio desconfiado, só então percebi uma mancha grande e úmida no meio da rede mas não disse nada, La fora sentimos o que meu pai falava de uma espécie de mal cheiro, vindo da casinha, eu ouvi a palavra enxofre !
Meu pai entrou na frente, com uma peixeira na mão, minha mãe ficou atrás dele prometendo uma pisa pra nós se a gente tentasse entrar ali, mesmo assim a catinga que escapava para o quintal atiçava a curiosidade da gente como o vento atiça o fogo de uma roça, não consigo recordar direito agora os fragmentos das falas de papai e mamãe
___ ele saiu pelo fundo do quintal
__ me da a rede homem, eu lavo no açude !
___ mamãe ele pegou meu triangulo!
___ a graxa da catraca da minha monareta fez foi secar. Meu irmão continuava desconfiado.
Vi minha mãe fazer uma oração que aprendeu com a vó
___ seculó, seculó e amem...
___ tomem café e vão pra escola vou fazer fumaça aqui. Trovejou a voz do meu pai, quando eu preparava pra pegar a monareta encostada no pé de caju vi meu pai acendendo uma vela no batente da porta da casinha, tirando uns espinhos de quandu que ele tinha escondido na cobertura de palha da casa e couro de algum tipo de animal que ele tinha matado de espingarda, quando saia pra caçar. Eu sabia o que ele ia fazer: um defumador pra espantar o fedor do enxofre!
Na escola quase não prestamos atenção na aula,o ano estava acabando, ainda bem! eu na sétima, meu irmão na oitava mais próximo da libertação do que eu, nossos amigos rasgavam seus cadernos  ou jogavam pra cima, as meninas escreviam cartas para um programa de radio da cidade, meu irmão com molecagem ainda jogou o meu no ventilador quase partindo ele ao meio mas uma das capas a que tinha a tabela periódica conseguiu sobreviver, mal recebi minhas notas fui La na sala de meu irmão chamar ele pra gente ir pra casa, ele tava sozinho em um canto rodando o caderno no dedo pensativo.
Quando sai do colégio uma ideia se apossou de mim, meu irmão vinha na garupa, com os nossos cadernos debaixo da blusa de farda, ao passo que eu tinha ideias,e eu me perguntava se meu irmão tinha cérebro.
__ vamos seguir o rastro do velho
___ vai tu fi de rapariga! Pelo menos nessa hora meu irmão tinha soltado o palavrão na hora certa mas notei que ele falou nervoso, acuado, não como das outras vezes que era por pura maldade, dessa vez a força do habito foi mais forte do que ele, decidi pedalar ate o mercado e deixar ele com um tio que vendia verdura no mercado.
__ olha a agulha, olha a linha..
__ vai passando o sorveteiro...
E eu me esforçando pra pedalar no meio dos camelos, feirantes e compradores.
___ três pro dez...
__ ei fulano to troca 50...
Ate que chegou um ponto que não consegui mais pedalar
Demos uma desculpa qualquer para o meu tio e comecei a voltar pra casa sozinho, quando olhei uma vez pra trás vi meu irmão sentado em um tamborete eu sentia que ele estava com peso na consciência, querendo me ajudar mas o medo falava mais alto.
Fiz de conta que ia pra casa, mas quanto cheguei um quarteirão antes dobrei na outra rua que passava por trás do quintal do meu pai, ainda era possível sentir o odor do enxofre no pe da cerca onde o velho tinha pulado, naquele ano meu pai ainda não tinha roçado o pe da cerca, mas notei que algo acido, que nem os produtos que minha mãe usava para fazer sabão tinha pingado em cima do capim que agora tava seco, algumas pernas de arame estavam partidas,não como se fosse alguém que tivesse partido a facão ou com alicate, mas como se algo tivesse pingado nelas e elas tivessem derretido.
Apesar de já ter passado gente na estrada, que exibia marcas de pés humano, rastro de bicicleta e carroça, conseguiu notar que o mal cheiro atravessava a estrada e ganhava a outra quinta do outro lado da estrada, joguei minha bicicleta para o outro lado e subi a porteira, quase perdi meu caderno que tinha colocado preso no ferro da garupa da monareta, escondi o caiau em uma moita de capim, quase sorrindo do meu irmão, da mania que ele tinha de botar apelido nas coisas, maluco !
Fiquei só com  o caderno debaixo do braço e caminhei por dentro do terreno, que pouco a pouco foi se transformando em um lagadiço, meus pés afundando na lama, dei uma volta em uma plantação de arroz pingo de ouro que tinha sido feita em um barreiro de tirar barro para construir casas e que agora tinha se transformado em uma lagoa, o rastro começava em um lado do barreiro e continuava do outro lado como se o velho tivesse caminhado por dentro, notei varias piabas e cabeças de prego boiando na água suja e fedida, os aguapés todos mortos na superfície do liquido e as palhas de arroz secas e queimadas embora eu soubesse que a plantação era boa pois vi meu pai comentando alegre com o vizinho que tinha arrendado a quinta e que a colheita iria ser boa, depois que atravessei pro outro lado tinha mais uma vareda de porco de depois dali era um salto de pulga pra chegar no pe do morro e começar a subir na serra, já estava iniciando a subida quando notei passos atrás de mim, passos atrapalhados quase caindo e um fungado esbaforido como de alguém que tivesse corrido muito, e uma mão úmida pousou no meu ombro, fazendo eu soltar um grito.
___ que é isso ta ficando com medo agora ?
Era meu irmão.
__ que que tu ta fazendo aqui ?
___ vim te ajudar. Ele não estava sozinho.
___ tu ficou doido, pra que tu quer a espingarda do papai? Ele vai bater na gente a ter não querer mais!
__ pra proteger a gente do velho se ele quiser fazer mal.
__ cara tu ta estranho, o papai não viu não?
__ não, peguei escondido.
Eu me sentei com ele em uma pedra antes de continuar a caminhada.
__ e se esse velho for coisa do outro mundo a espingarda pode ate bater catolé na hora e não servir pra nada, disse bebendo um gole d’água que ele tinha trazido em uma garrafa de refrigerante.
___ eu sei como é que se faz, vai ser mão na roda, eu já vi o papai fazendo.
Ele começou a benzer com o sinal da cruz a boca do cano da cartucheira do meu pai e fez uma oração das almas santas benditas que a gente decorou de tanto o papai rezar toda segunda feira as seis hora e ascender um maço de vela.
Continuamos a subida da serra aberando a cerca de arame, seguindo um rastro do mal cheiro e galhos quebrados, meu irmão sabia um pouco disso por que já tinha sido dos escoteiros mas tinha sido expulso por indisciplina, já estávamos quase desistindo e pensando em voltar pra casa quando a gente foi pego de surpresa e aconteceu o que acabou me marcando para sempre.
Tudo aconteceu muito rápido, ele pulou atrás de nós como uma aranha, bloqueando nossa descida, na hora não percebi as intenções do velho só podíamos agora correr pra frente, entrando cada vez mais na mata, a gente saiu passando por cima de tudo , pé de macambira, moita de unhas de gato, cipós, e caixa de maribondos, em determinado momento da corrida, o cano da espingarda que meu irmão carregava se enrolou em um cipó e ele preferiu disparar na cara do velho, mas o tiro variou por causa da mira mal feita e acertou no ombro, do velho atrasando um pouco ele, e fazendo com que meu irmão me alcançasse deixando a arma no chão, depois de correr por um bom tempo paramos, agente tinha tentado descer por outro lado mas agora a gente tava esgotado com as mãos nos  joelhos, quase botando os bofes pra fora de tanto correr.
___ ah ah ah agora que o pai mata a gente, eu deixei a espingarda dele cai.
Pro meu irmão falar isso a coisa tava seria
___ eu acho que a gente ta perdido.
De fato tínhamos acabado voltando pro lugar que meu irmão tinha disparado a arma mas ela não estava La, não sei o que tinha me levado ate ali, mas comecei a sentir medo de não descer a serra com meu irmão, e meu medo só aumentou quando o velho pousou de repente em cima da cerca fazendo as estacas balançarem e o arame ringir, aquilo não era o velho, aquilo não era gente, era um simulacro e tentava a todo custo se passar por um de nós mas claro que aquele odor não iria deixar ele, nem aquela face que hoje eu ainda lembro, com aparência de crustáceo, os casco fendidos no local dos pés, o ombro vazava enxofre sem parar, eu e meu irmão nos olhamos em uma fração de segundos, iríamos correr de novo embora cansados, tudo foi muito rápido e mil pensamentos passavam pela minha cabeça, mas notei o desejo sincero de meu irmão se redimir ao correr junto comigo, e em determinado momento ir ficando pra trás e empurrando meu ombro pra quer eu o ultrapassasse, mesmo que isso significasse ele ser apanhado, ele iria se sacrificar por mim ! quando olhamos por cima do ombro, o velho em cima da cerca fez brotar asas de morcegos das costa e preparou para da um bote em nós em um único voo.
Foi tudo muito rápido, meu irmão correndo junto comigo gritando vai ! vai! Num olha pra mim não ! e eu gritando socorro socorro ! pai! Mãe! era o instinto de filho falando mais alto e recorrendo a quem mais pode proteger a gente nessa horas de medo e pesadelo.
Foram segundos de fuga que duraram a eternidade ate que um vulto surgiu em nossa frente com a espingarda que meu irmão tinha deixado cair, uma figura imponente com um patuá pendurado no pescoço, chapéu de palha na cabeça e facão na cintura.
___ se abaixem disse aquela voz conhecida, e que durante tantos anos pela frente iria ser nosso porto seguro. Não sei se por a gente ta cansado mas obedecemos e nos jogamos no chão, para nosso pai fazer mira de modo tão natural com  espingarda fechando um dos olhos puxando o cão da espingarda e apertando o gatilho, senti o cheiro da pólvora da espoleta que explodiu e o ombro do meu pai sacudir devido o contado com a coronha no momento que a espingarda disparou e o cano ficou fumaçando.
O tiro atingiu o bicho em pleno ar e ele foi arremessado pra trás caindo sem vida em cima da cerca de arame e ficando todo ilinhado lá nas pernas de arame e estacas da cerca.
A voz do meu pai chegou de muito longe:
__ me da ai teu caderno
__ o que , o que,
Ele já tinha tirado o caderno da minha mão, pois eu tava muito atarentado e meu irmão também, sentado em cima de um cupim, olhando as marcas de macambira e unha de gato pelo corpo e pelo visto como meu corpo ardia eu deveria esta do mesmo jeito, estávamos banhados de suor e já preparávamos o espírito para o banho de taca.
___ vocês deveriam cuidar melhor do caderno de você, ele tirou um toco de lápis do patuá e vez um x na tabela periódica, bem em cima da abreviação da sigla do enxofre.
___ eu tinha uma outra lista um pouco diferente dessa mas tu e teu irmão quando nasceram começaram a crescer e acabaram rasgando com brincadeira, ___ vem aqui disse pro meu irmão que se aproximou desconfiado, ora do sipó pensei, o que não faltava era opção na mata.
___ apesar de tu ter errado o tiro, você benzeu bem o cano da espingarda deu pra sentir quando peguei arma.
Nos tivemos que ajudar nosso pai a fazer uma coivara de fogo pra queimar o bicho.
__ vamos embora o pessoal vai pensar que é queima de roça e que o fogo se espalhou pela mata.
Por isso hoje quando visito meu irmão e ele quer perder a paciência com os filhos dele e xingar eu sempre digo pra ele ter calma e lembrar do velho do enxofre,a lembrança sempre surte efeito, pois deste aquele acontecido meu irmã ficou mais contido apesar de ter um jeito meio truculento e ate meio engraçado as vezes, mas analisando agora o ocorrido não foi nem um bicho o principal fator de mudança na personalidade do meu irmão mas sim o elogio que meu pai fez na mata, ainda lembro do meu irmão orgulhoso com um sorriso no canto da boca segurando a espingarda do papai depois que ele falou que a reza tinha sido bem feita, meu irmão ficou todo inchado parecendo um cururu por causa do que o pai tinha dito, e o papai falou mais uma coisa naquele dia que eu me lembro.
___ Agora que lembrei vocês pode descer agora, ou querem ir comigo tirar mel de abelha italiana, disse improvisando um defumador com uma feze de gado seca, o velho gostava do perigo.

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